sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

recordar sem nenhuma emoção


"Página do autor
Marco Aurélio
Meditações
Versão portuguesa baseada na tradução inglesa de Maxwell Staniforth
Copyright ©Luís Varela Pinto
Introdução Livro 1 Livro 2 Livro 3 Livro 5 Livro 6 Livro 7 Livro 8 Livro 9 Livro 10 Livro 11 Livro 12 Notas
[Seguinte]
LIVRO 4
1. Se o poder interior que nos rege for fiel à Natureza, ajustar-se-á sempre prontamente às possibilidades e oportunidades oferecidas pelas circunstâncias. Não exige material predeterminado; na perseguição dos seus objectivos está pronto para o compromisso; os obstáculos ao seu progresso são simplesmente convertidos em matéria para seu próprio uso. É como uma fogueira a dominar um monte de lixo, que se tivesse reduzido a um débil brilho; mas a chama ardente depressa assimila a matéria, consome-a e dá ainda mais vida à fogueira.
2. Não tomes nenhuma iniciativa ao acaso, ou sem teres em atenção os princípios que regem a sua própria execução.
3. Os homens procuram a solidão no deserto, na praia ou nas montanhas — um sonho que tu próprio tanto tens acarinhado. Mas tais fantasias são totalmente impróprias de um filósofo, uma vez que em qualquer altura que queiras podes recolher-te dentro de ti próprio. Não há para o homem refúgio algum mais silencioso e mais tranquilo do que a própria alma; sobretudo para quem possua, em si mesmo, recursos que apenas precisa de contemplar para assegurar uma paz de espírito imediata — paz que é apenas outro nome para um espírito bem organizado. Aproveita, pois, este retiro com frequência e renova-te continuamente. Traça para a tua vida regras sumárias, mas que abranjam o fundamental; o retorno a elas bastará para remover todas as aflições e te reenviar sem desgaste para os deveres a que tens de voltar. Afinal, o que é que te aflige? Os vícios da humanidade? Lembra-te da doutrina que diz que todos os seres racionais são criados uns para os outros; que a tolerância é parte da justiça; e que os homens não são malfeitores intencionais. Pensa na miríade de inimizades, suspeitas, animosidades e conflitos que se extinguiram juntamente com o pó e as cinzas dos homens que os experimentaram; e não te aflijas mais. Ou é a parte que te coube em sorte no universo que te agasta? Recorda uma vez mais o dilema, «se não uma sábia Providência, então um simples amontoado de átomos», e pensa na profusão de indícios de que este mundo é como que uma cidade. São os males do corpo que te afligem? Pensa que o espírito só tem que destacar-se e apreender os seus próprios poderes, para não mais se envolver com os movimentos da respiração, sejam eles suaves ou ásperos. Em resumo, recorda tudo aquilo que aprendeste e com que concordaste a respeito da dor e do prazer. Ou é a ilusão da celebridade que te perturba? Não percas de vista a rápida investida do esquecimento e os abismos de eternidade que nos esperam e nos precedem; repara como são ocos os ecos do aplauso, como são inconstantes e sem discernimento os juízos dos pretensos admiradores, e que insignificante é a arena da fama humana. Porque a terra inteira é apenas um ponto, e a nossa própria morada, um minúsculo canto nela; e quantos lá há que te vão louvar, e que tipo de homens são eles? Não te esqueças, pois, de te retirares para o pequeno campo do teu eu. Sobretudo, nunca lutes nem te afadigues; sê, antes, dono de ti próprio, e encara a vida como homem, como ser humano, como cidadão e como mortal. Entre as verdades em que seria bom que pensasses estão estas duas: primeiro, que as coisas nunca podem atingir a alma, mas apenas ficar inertes fora dela, de modo que o desassossego só pode resultar de fantasias interiores; e segundo, que todos os objectos visíveis mudam num instante e deixam de existir. Pensa nas inúmeras mudanças em que tu próprio tomaste parte. Todo o universo é mudança, e a própria vida não é senão aquilo que tu acreditas que é22 .
4. Se o poder do pensamento é universal no género humano, também a posse da razão o é, fazendo de nós criaturas racionais. Donde, portanto, que esta razão, com os seus «tu deves fazer isto» ou «tu não deves fazer aquilo» não é para nós menos universal. Há, assim, uma lei-mundo; o que, por sua vez, significa que somos todos concidadãos e partilhamos uma cidadania comum, e que o mundo é uma só cidade. Há alguma outra cidadania comum que possa ser reclamada por toda a humanidade? E é deste mundo-estado que o espírito, a razão e a lei, eles mesmos, derivam. Senão, de que mais? Assim como a parte terrena de mim tem a sua origem na terra, a parte aquosa num elemento diferente, e a respiração numa e as partes quentes e ardentes noutra das fontes de si mesmas, situadas algures (porque nada vem do nada nem pode regressar ao nada), assim também deve haver uma origem para o espírito.
5. A morte, como o nascimento, é um dos segredos da Natureza; os mesmos elementos que se combinaram, dispersam-se então. Nada nela tem de causar pena. Para seres dotados de espírito, ela não é anormal, nem de forma nenhuma incoerente com o plano da sua criação.
6. Que os homens de um certo tipo se comportem como o fazem, é inevitável. Desejar que as coisas sejam de outra maneira é como desejar que a figueira não produza o seu sumo. Em qualquer caso, lembra-te de que dentro de muito pouco tempo, tanto tu, como ele, estarão mortos, e os vossos próprios nomes rapidamente esquecidos.
7. Afasta de ti a ideia do «Fui ofendido», e com ela irá o sentimento. Rejeita o teu sentido de ofensa, e essa ofensa desaparece.
8. Aquilo que não corrompe o próprio homem não pode corromper-lhe a vida, nem provocar-lhe qualquer dano quer exterior, quer interiormente.
9. As leis da conveniência do colectivo exigiram que isto acontecesse.
10. O que quer que aconteça, acontece de forma correcta. Observa com muita atenção e verás que isto é verdade. Na sucessão de acontecimentos não há só uma mera sequência, mas uma ordenação que é justa e correcta, como a da mão daquele que entrega a todos o que lhe é devido. Mantém, pois, a tua atenção, como de princípio, e deixa que a bondade acompanhe cada uma das tuas acções — bondade, quero dizer, no sentido exacto da palavra. Em todas as tuas actividades, presta atenção a isto.
11. Não copies as opiniões dos arrogantes, nem deixes que eles te ditem as tuas próprias, e olha as coisas à luz da verdade.
12. Para dois pontos deves tu estar sempre pronto: primeiro, para fazer exclusivamente aquilo que a razão, nossa rainha e legisladora, sugerir para o bem-estar comum; e segundo, para reconsiderar uma decisão, se alguém presente te corrigir e te convencer de um erro de julgamento. Mas tal convicção deve proceder da certeza de que isso servirá a justiça ou o bem comum ou qualquer outro interesse do género. Deve ser esta a única coisa a considerar; não a probabilidade do prazer ou da popularidade.
13. Tu és dotado de razão? «Sou.» Então por que não usá-la? Se a razão fizer o seu papel, que mais podes pedir?
14. Como parte que és, és inseparável do Todo. Vais-te dissipar naquilo que te deu vida; ou melhor, vais-te transmutar uma vez mais na Razão criadora do universo.
15. Muitos grãos de incenso caem no mesmo altar: uns mais cedo, outros mais tarde — não importa.
16. Basta-te regressar aos ensinamentos do teu credo, e à veneração da razão, e numa semana aqueles que agora te colocam no grupo das bestas e dos macacos irão chamar-te um deus.
17. Não vivas como se tivesses mil anos à tua frente. O destino está ali ao virar da esquina; torna-te bom enquanto a vida e o poder ainda te pertencem.
18. Quem ignora o que o vizinho está a dizer ou a fazer ou a pensar, e apenas cuida de que os seus próprios actos sejam justos e piedosos, ganha enormemente em tempo e em paz. Um homem bom não anda à procura dos defeitos dos outros, antes prossegue vigorosamente em direcção ao seu objectivo.
19. O homem cujo coração palpita pela fama depois da morte não pensa que todos aqueles que se lembrarem dele em breve estarão também mortos, e que, com o correr do tempo, geração após geração, até ao fim, depois de sucessivamente cintilar e se sumir, a centelha final da memória se extingue. Mais, mesmo supondo que aqueles que te recordam nunca morreriam, e nem as suas memórias, mesmo assim, o que é que isso representa para ti? Na sepultura, nada, evidentemente; e mesmo em vida, para que serve o louvor — senão talvez para facilitar qualquer propósito menor? Estarás, pois, seguramente, a proceder à rejeição daquilo que a Natureza te deu hoje, se todo o teu espírito estiver voltado para aquilo que os homens irão dizer de ti amanhã.
20. Tudo o que, de um qualquer modo, é belo, recebe a sua beleza de si próprio, e não precisa de nada para além de si próprio. O elogio não entra nisso, porque nada fica melhor ou pior em resultado do elogio. Isto aplica-se mesmo às formas mais mundanas da beleza: objectos naturais, por exemplo, ou obras de arte. De que mais precisa a verdadeira beleza? De nada, certamente; tal como a lei, ou a verdade, ou a bondade, ou a modéstia. Alguma destas fica mais bela com o louvor, ou mais feia com a crítica? Será que a esmeralda perde a sua beleza por falta de admiração? Ou o ouro, ou o marfim, ou a púrpura? Ou uma lira, ou uma adaga, ou um botão de rosa, ou um jovem?
21. Se as almas sobrevivem depois da morte, como é que o ar lá em cima arranjou espaço para elas desde o princípio dos tempos? Pergunta, também, como é que a terra arranjou espaço para todos os corpos enterrados desde tempos imemoriais. Aí, após um curto intervalo, a transformação e a corrupção abrem espaço para outros corpos. Da mesma maneira, as almas transferidas para o ar sobrevivem algum tempo antes de sofrerem uma transformação e uma disseminação e são então transmutadas em fogo e levadas de novo para o interior do princípio criador do universo; e assim se cria espaço para receber outras. Esta será a resposta de qualquer crente na sobrevivência das almas. Além disso, temos de contar não só com o número de corpos humanos enterrados desta maneira, mas também com o de todas as criaturas que são devoradas diariamente por nós próprios e pelos outros animais. Quantas e quantas não são, por assim dizer, enterradas nos corpos daqueles a que servem de alimento! E uma vez mais, pela sua dissolução no sangue e depois, pela sua transmutação em ar ou fogo, todo o espaço necessário fica disponível. Como é que descobrimos a verdade de tudo isto? Fazendo a distinção entre matéria e causa.
22. Nunca te deixes arrebatar pela emoção: se um instinto se agita, cuida primeiro de saber se ele vai ao encontro das exigências da justiça; quando uma impressão toma forma, certifica-te primeiro da sua exactidão.
23. Ó mundo, estou em sintonia com cada uma das notas da vossa grande harmonia! Para mim nunca é cedo nem tarde se para vós for a tempo. Ó Natureza, tudo o que as vossas estações produzem é fruta para mim. De vós vêm, e em vós e para vós são todas as coisas. «Querida Cidade de Deus!» Não choremos, mesmo quando o poeta exclama «Querida Cidade de Cecrops!»23
24. «Se quiserdes conhecer a satisfação, sede parco nos actos», disse o sábio. Melhor ainda, limita-te àqueles que são essenciais, e àqueles que a razão exige de um ser social. Isto traz a satisfação que resulta de fazer apenas algumas coisas e fazê-las bem. A maior parte das coisas que dizemos e fazemos não são necessárias, e a sua omissão pouparia tempo e aborrecimentos. Portanto, um homem deve perguntar-se a cada passo, «Será esta uma das coisas supérfluas?» Mais ainda, não apenas os actos inúteis, mas mesmo as impressões inúteis devem ser suprimidas; porque assim não resultarão numa acção desnecessária.
25. Faz a ti próprio um teste à tua capacidade de viver uma vida de homem bom; uma vida de pessoa satisfeita com a parte que lhe coube no universo, que apenas procura ser justa nas suas acções e caridosa nas suas maneiras.
26. Viste aquilo?24 — agora, repara. O teu papel é ser sereno, simples. Alguém está a proceder mal? O mal fica com ele. Aconteceu-te alguma coisa? Está bem; pois foi o teu quinhão do todo universal que te foi cometido quando começou o tempo; um fio urdido na tua teia particular, como tudo o mais que acontece. Numa palavra, a vida é curta; portanto, tira bom proveito da hora que passa, obedecendo à razão e procedendo com justiça. Não vergues, mas sê comedido.
27. Ou um universo que é todo ele ordem, ou então uma balbúrdia atirada ao acaso, mas formando um universo. Mas, poderá subsistir alguma ordem em ti próprio e ao mesmo tempo a desordem no Todo mais amplo? E isso quando existe unidade de sentimentos entre todas as partes da natureza, apesar das suas divergências e dispersão?
28. Um coração negro!25 Um coração efeminado, obstinado; o coração de uma besta, de um animal selvagem; infantil, estúpido e falso; o coração de um vigarista, o coração de um tirano.
29. Se aquele que não sabe o que está no universo é uma pessoa estranha ao universo, não o é menos aquele que não sabe o que lá se passa. Uma tal pessoa é um exilado, um auto-banido do regime da razão; um cego com os olhos do entendimento escurecidos; um pobre dependente dos outros, sem recursos próprios para a sua subsistência. É uma excrescência no mundo quando se dissocia e divorcia das leis na nossa natureza comum ao recusar aquilo que lhe coube em sorte (e que afinal é um produto da mesmíssima Natureza que te produziu a ti); é um membro decepado da comunidade, quando separa a própria alma da alma única de todas as coisas racionais, deixando-a à deriva.
30. Um filósofo anda sem camisa26 ; outro sem livros; um terceiro, meio-despido, diz, «Pão, não tenho, e mesmo assim apego-me à razão.» Pela minha parte, também não tenho o fruto daquilo que aprendi, contudo apego-me a ela.
31. Entrega o teu coração ao que aprendeste, e busca nisso refrigério. Faz por passar os dias que te restam como alguém que, em todos eles, se entregou de todo o coração aos deuses, e que, portanto, não é dono nem escravo de ninguém.
32. Pensa, digamos, nos tempos de Vespasiano;27 e o que é que vês? Homens e mulheres muito ocupados a casar, a criar os filhos, a adoecer, a morrer, a lutar, a festejar, a tagarelar, a trabalhar a terra, a lisonjear, a fanfarronar, a invejar, a intrigar, a rogar pragas, a jogar o destino, a amar, a entesourar, a cobiçar tronos e honrarias. De toda essa vida, nem o mais pequeno vestígio sobrevive hoje. Ou avança até aos dias de Trajano; outra vez a mesma coisa; essa vida morreu também. Dá igualmente uma vista de olhos aos registos de outros povos e épocas passados; repara como todos e cada um, depois da sua curta vida de luta, morreram, dissolvendo-se nos elementos. Recorda mais especialmente alguns, mesmo do teu conhecimento, que buscaram a vaidade em vez de se contentarem com um cumprimento corajoso dos deveres para que foram criados. Em tais casos é essencial não nos esquecermos de que o mérito da perseguição de qualquer objectivo depende do valor do objectivo perseguido. Portanto, se quiseres evitar o desencorajamento, nunca te deixes absorver por coisas que não sejam de primeira importância.
33. Expressões outrora correntes caíram hoje em desuso. Nomes, também, que eram antigamente familiares, são hoje virtualmente arcaísmos; Camilo, Caleo, Voleso, Dentato; ou, um pouco mais tarde, Scípio e Catão, Augusto, também, e mesmo Adriano e António. Todas as coisas se dissolvem no passado lendário e em pouco tempo ficam envoltas no esquecimento. Mesmo para os homens cujas vidas foram de uma glória deslumbrante, esta passa; quanto aos outros, ainda mal acabam de dar o último suspiro e já, nas palavras de Homero, «os perdem de vista e de nome». O que é, afinal, a fama imortal? Qualquer coisa vazia e oca. A que é que nós devemos então aspirar? A isto e só a isto: ao pensamento justo, ao procedimento desinteressado, à boca que não mente, ao carácter que acolhe cada acontecimento como uma coisa predestinada, já esperada e que emana da fonte e origem Única.
34. Submete-te a Clotho28 de bom grado e deixa-a fiar o teu fio do material que ela quiser.
35. Todos nós somos criaturas de um dia; tanto os que recordam como os que são recordados.
36. Vê como todas as coisas estão sempre a nascer da mudança; ensina-te a ti próprio a ver que a mais elevada felicidade da Natureza reside em mudar as coisas que existem e formar novas coisas da mesma espécie. Tudo aquilo que existe é, em certo sentido, a semente do que irá nascer de si. Não há nada menos próprio de um filósofo do que imaginar que a semente só pode ser alguma coisa que se deita à terra ou no útero.
37. Muito em breve vais morrer; mas tu ainda hoje não és puro, nem és superior à inquietação; nem imune ao mal exterior; nem caridoso para todos os homens, nem estás persuadido de que proceder com justiça é a única sabedoria.
38. Observa cuidadosamente aquilo que guia as acções dos sábios, e aquilo que eles evitam ou buscam.
39. Para ti, o mal não vem do espírito de outrem; nem mesmo de qualquer das fases ou mudanças da tua estrutura corporal. Então, donde? Daquela parte de ti próprio que age como avaliador daquilo que é mau. Recusa a sua avaliação e tudo ficará bem. Embora o pobre corpo, tão próximo dele, fique ferido ou queimado, supure ou gangrene, cala a voz desse avaliador; que ele não declare nada mau ou bom se isso pode acontecer tanto a homens bons como a homens maus — porque tudo o que acontece de forma imparcial aos homens, quer eles observem as leis da Natureza ou não, não pode nem entravar os seus propósitos, nem precipitá-los.
40. Pensa sempre no universo como um organismo vivo, com uma substância e uma alma únicas; e vê como todas as coisas estão sujeitas à perceptibilidade deste único todo, todas são movidas pelo seu impulso único, e todas desempenham o seu papel na causação de tudo o que acontece. Repara no intricado da meada, na complexidade da teia.
41. «Uma pobre alma que carrega consigo um cadáver»29 , eis o que Epicteto te chama.
42. Estar em processo de mudança não é um mal, tanto como não é um bem ser um produto de uma mudança.
43. O tempo é um rio, o inexorável fluir de todas as criaturas. Uma coisa mal aparece à vista e logo desaparece rapidamente e outra nasce para logo, por sua vez, ser varrida.
44. Tudo o que acontece é tão normal e já esperado como a rosa na primavera ou o fruto no verão; isto é verdade para a doença, para a morte, para a calúnia, para a intriga e para todas as outras coisas que deliciam ou incomodam os tolos.
45. O que acontece a seguir está sempre intimamente relacionado com aquilo que o precedeu; não é um desfile de acontecimentos isolados que obedecem simplesmente às leis da sequência, mas uma continuidade racional. Além disso, tal como as coisas que já existem, estão todos coordenados harmoniosamente, os que se encontram em processo de nascimento exibem a mesma maravilha de concatenação, e não o facto nu e cru da sucessão.
46. Lembra-te sempre do ditado de Heráclito, «Morte da terra, nascimento da água; morte da água, nascimento do ar; do ar, o fogo; e assim sucessivamente sempre em ciclos repetidos». Lembra-te também do seu «viajante esquecido do sítio onde o seu caminho o leva», do seu «homens sempre em desacordo com a sua companheira mais próxima» (a Razão controladora do Universo) e do seu «embora eles deparem com isto a cada passo, continuam a achá-lo estranho». E ainda, «nós não podemos agir ou falar como homens adormecidos», (porque, de facto, os homens durante o sono imaginam-se a agir e a falar), «nem como crianças às ordens dos pais»; isto é, em obediência cega às máximas tradicionais.
47. Se um deus te dissesse, «Amanhã ou, quando muito, depois de amanhã, morrerás», tu não ficarias muito interessado em saber, a não ser que sejas o mais abjecto dos homens, se isso seria no dia seguinte ou no outro — porque, qual é a diferença? Da mesma maneira, não consideres de muita importância saber se isso será daqui a muitos anos ou já amanhã.
48. Lembra-te sempre de todos os médicos, já mortos, que franziam as sobrancelhas perante os males dos seus doentes; de todos os astrólogos que tão solenemente prediziam o fim dos seus clientes; dos filósofos que discorriam incessantemente sobre a morte e a imortalidade; dos grandes chefes que chacinavam aos milhares; dos déspotas que brandiam poderes sobre a vida e a morte com uma terrível arrogância, como se eles próprios fossem deuses que nunca pudessem morrer; de cidades inteiras que morreram completamente, Hélice, Pompeia, Herculano e inúmeras outras. Depois, recorda um a um todos os teus conhecidos; como um enterrou o outro, para depois ser deposto e enterrado por um terceiro, e tudo num tão curto espaço de tempo. Repara, em resumo, como toda a vida mortal é transitória e trivial; ontem, uma gota de sémen, amanhã uma mão cheia de sal e cinzas. Passa, pois, estes momentos fugazes na terra como a Natureza te manda que passes e depois vai descansar de bom grado, como uma azeitona que cai na estação certa, com uma bênção para a terra que a criou e uma acção de graças para a árvore que lhe deu a vida.
49. Sê como o promontório contra o qual as ondas quebram e voltam a quebrar; mantém-se firme até que, por fim, as águas tumultuosas à sua volta se rendem e vão descansar. «Que infeliz sou, o que me havia de acontecer!» De modo nenhum; diz antes, «Que feliz que eu sou em não ter ficado com azedume, mas antes inabalado pelo presente e sem receio do futuro». Aquilo podia ter acontecido a qualquer pessoa, mas nem todos ficariam assim sem azedume. Então, por que atribuir uma coisa à má sorte em vez de atribuir a outra à boa sorte? Pode alguém chamar pouca sorte a uma coisa que não seja uma infracção à sua natureza; e poderá ser uma infracção à sua natureza se não for contra a vontade da natureza? Bem, então: já aprendeste a conhecer essa vontade. Isso que te aconteceu impede-te de ser justo, magnânimo, moderado, judicioso, discreto, verdadeiro, respeitador de ti próprio, independente, e tudo o mais que leva à realização da natureza do homem? Eis, então, uma regra a recordar no futuro, quando alguma coisa te tentar a sentires-te amargo: não «Isto é uma infelicidade», mas «Suportar isto dignamente é uma felicidade».
50. Filosofia à parte, uma efectiva ajuda no sentido de menosprezar a morte é pensar naqueles que se apegaram avidamente às suas vidas. Que vantagem tiveram eles sobre os que morreram ainda jovens? A terra cobre-os a todos eles algures, em qualquer tempo; Cadiciano, Fábio, Juliano, Lépido e todos os outros que acompanharam tanta gente às suas sepulturas simplesmente para, depois, serem por fim acompanhados às suas próprias. Curta foi, afinal, a prorrogação de que gozaram; arrastados até ao fim nestas condições e com estes ajudantes, e num corpo miserável. Não lhe dês, pois, grande importância; repara no abismo de tempo por detrás dela e no infinito que ainda se lhe segue. Em face disto, o que é que Nestor, com todos os seus anos tem a mais em relação a qualquer bebé de três dias?
51. Segue sempre pelo caminho mais curto; e o caminho mais curto é o da natureza, tendo como objectivo uma perfeita segurança em cada palavra e acção. Tal propósito libertar-te-á da ansiedade e do conflito, e de todos os compromissos e estratagemas. "

Um comentário:

Cássio Amaral disse...

cu do paraná cu

ritiba

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chuva e muita gente...


vou em brasília pra você autografar o livro pra mim.

não o comprei ainda,ms farei isso pra tal.

um pinhão telepático para ti.