Y SEMIÓTICO, de Robson Corrêa de Araújo
Escrito por Gerson Valle
Monday, 10 July 2006
A vivência do poeta, com suas amizades e preferências (artísticas, literárias, filosóficas...) está diretamente ligada ao cenário de Brasília. Na verdade, forma e conteúdo se interpenetram em tal grau, que as palavras soltas, arrumadas sem necessária sintaxe a lhes prender, dispostas umas sobre as outras, são como prédios, superquadras, parques, eixinhos e eixão de Brasília.
Tradicionalmente, apenas se dizia “à clef” a ficção em que o autor não revelava claramente as pessoas e situações narradas que ficavam por trás de seus personagens e narrações. Na Poesia, a distância do realismo e o fascínio pelas imagens não obrigatoriamente esclarecidas se fazem, de uma forma geral, por metáforas, metomínias, anacolutos, e outras figuras. No surrealismo criou-se até a “escrita automática”, que se compõe com a espontaneidade do inconsciente deixado escapar sem reflexão ou coordenação do seu significado. Tudo isto tornou-se preponderante em certas correntes da contemporaneidade poética. A ponto de já ninguém buscar uma obrigatória coerência racional no discurso da Poesia. Robson Corrêa de Araújo traz mais que isto em seus versos (Y Semiótico – Brasília, Ed. Independente, 2006). Ele acrescenta-lhes referências “à clef” como tradicionalmente eram empregadas na ficção. Há nomes de pessoas e lembranças de fatos que são do alcance de seus conhecidos ou familiares somente, e que não necessita esclarecer ao leitor. Sobretudo porque fica um subentendido da leitura percebido no enfoque, que não pede esclarecimento, por lidar com os signos despojados de sua carga dicionarista, ou enciclopedista se se preferir, voltados para a composição de um painel pontilhista, onde a visão de conjunto é que cria a expressão maior dentre os traços largados em seus detalhes. Estes são visivelmente significantes na composição integrada.
A relação com a visão é óbvia em uma tal técnica. A Poesia está em se perceber a forma, cores, disposições dos lugares, ambientações, todo o comportamento subjetivamente sugerido na referência “à clef”, como se fosse, efetivamente, não uma composição de palavras, mas de artes plásticas. Mesmo as pessoas e fatos passam a constituir imagens. E aí está a magia desses versos soltos, aparentemente desconexos e sem amarras, mas profundamente voltados à captação de uma vivência e de uma cidade.
A vivência do poeta, com suas amizades e preferências (artísticas, literárias, filosóficas...) está diretamente ligada ao cenário de Brasília. Na verdade, forma e conteúdo se interpenetram em tal grau, que as palavras soltas, arrumadas sem necessária sintaxe a lhes prender, dispostas umas sobre as outras, são como prédios, superquadras, parques, eixinhos e eixão de Brasília. Há mesmo um grande espaço onde se respira fora do urbanismo referencial nos poucos versos sempre curtos dos poemas contidíssimos. São como os jardins e canteiros entre as construções de cimento.
O paralelismo entre a Poesia das palavras esparsas com a concepção espaçosa de Brasília é acentuada no livro pelas fotografias que acompanham “pari passu” os poemas. Ao lado de cada poema há uma fotografia do alto de algum recanto de Brasília. Mais do que se fez, me parece, na Poesia Concreta, Robson compõe o visual de seu livro como indispensável à expressão de sua Arte. E isto porque não se trata de um ou outro poema apenas que se sobrepõe semanticamente à imagem (ou vice-versa). É o próprio objeto do livro que constitui o ”meio” e a “mensagem” como um todo. Seu formato quadrado e o preto e branco acentuam isto ainda mais, na relação de uma forma simétrica com a percepção neutralizada das imagens. Em si, retratações pueris que nos trazem o lirismo, Poesia pura “lato sensu”.
Somente como curiosidade, eu não poderia deixar de notar que num livro que publiquei em 1981 (edição independente de pouquíssimos exemplares, que nunca circulou em Brasília, e de que, certamente, Robson nunca ouviu falar), “Confetes de muitos carnavais”, há uma incrível coincidência com a visão do “Y Semiótico” no poema que abre o livro: brasília risca/ o crepúsculo/ em cúpulas/ para cima para baixo// e do alto fica/ quase sem ser cidade/ quando lago/ gramado/ rodovia/ super-quadra/ meio nobre/ esquisita/ como as letras Y ou W
A minha colocação da palavra “esquisita”, no entanto, refletia um pouco da estupefação do carioca que apenas passava por Brasília, sem nunca se fixar na cidade. Robson, ao contrário, demonstra no livro identidade e amor por ela, resultado da vivência própria e que, hoje, já conhecendo melhor Brasília, sinto até desejo de compartilhar. Só me resta mudar-me para lá. Mas, de qualquer forma a ligação de um “Y Semiótico” não só nos aproxima (na coincidência de uma letra como paradigma da cidade, um sentimento nele tão nítido) como evidencia, para mim, e para todos os seus leitores, o poeta a se revelar inteiro, corpo e alma, vôo por sobre a cidade amada.
Gerson Valle é membro do conselho editorial do Jornal Poiésis, autor de “Os souverirs da prostituta: a novela de Ipanema” (Catedral das Letras)
[Texto publicado na versão impressa de Poiésis - Literatura, Pensamento & Arte, nº 124, julho de 2006, pág. 7]
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